O jornal “Notícias de Leiria”, de 11 de Fevereiro de 2001, trazia um artigo assinado pelo director António Laranjeira Marques da Silva com o título “ O procurador arquivou, mas...” e o subtítulo: “A queixa crime por agressões sexuais vai avançar”, em que se dizia o seguinte: “Uma mulher de quarenta e quatro anos acusa o médico Rodolfo, com setenta e um anos, fundador do PPD/PSD e presidente da assembleia municipal de Leiria de a ter agredido sexualmente durante uma consulta. Apesar da existência de provas laboratoriais que confirmam a existência de contactos sexuais entre este médico e a sua paciente, o Ministério Público, sem ter ouvido previamente a queixosa ou o acusado, determinou o arquivamento do processo, considerando que não existira qualquer infracção penal”. Mais à frente referia que a paciente afirmara que já requerera a abertura de instrução, esclarecendo que a notícia tinha sido elaborada com base em declarações da ofendida.
Muito provavelmente, em Leiria, caiu o Carmo e a Trindade já que o artigo punha em causa não só o doutor, poderosa figura local, como o comportamento do ministério público. Mas o “Notícias de Leiria” e o seu director não se intimidaram e, no número seguinte, era publicado novo artigo sob o assunto em que se afirmava, a dado passo, que “segundo a queixosa, o médico aproximou o corpo do seu, e sob o pretexto de tratar da dor de cabeça da queixosa, efectuou movimentos repetidos até atingir o orgasmo, manchando a sua bata médica e a roupa da vítima”. Mais referia o jornal que, no próprio despacho de arquivamento do Ministério Público, era referido que, dos exames de ADN, resultara provada a existência de esperma do médico na roupa da doente”.
António Laranjeira Marques da Silva, na sua qualidade de director, fez ainda publicar uma “Nota do Director” nos seguintes termos: “Agradeço a todos os que contactaram o nosso jornal para manifestar o seu apoio à publicação do artigo (da semana passada). Temos a consciência de ter cumprido o nosso dever (...). É igualmente importante que novos testemunhos e dados convincentes vejam a luz do dia a fim de melhor suportar as nossas escolhas. Esperamos por eles(...) e continuaremos a fazer o nosso dever: publicar a verdade, independentemente de fazer mal ou não”.
O Ministério Público não deve ter hesitado um segundo em avançar com um processo crime por violação do segredo de justiça e o prestigiado médico e político local, juntou-lhe o crime de difamação. Arguidos eram não só o jornalista como a própria doente que teria revelado ao jornalista o teor do despacho de arquivamento.
O tribunal, embora reconhecendo interesse público à matéria em causa, considerou que o jornalista se tinha excedido ao dar a entender que teria havido outros casos de comportamentos menos louváveis do sempre honrado médico e politico local e, por isso mesmo, condenou o jornalista na pena de 500 dias de multa à taxa de 6 euros diários, pela prática dos crimes de violação de segredo de justiça e de difamação, sendo que quanto à ofensa da honra do distinto médico e politico, condenou ainda o jornalista a pagar-lhe uma indemnização de 5 000 euros. A doente teve a sorte de ser absolvida do crime de violação de segredo de justiça porque não se provou que tivesse sido ela a fornecer o despacho de arquivamento ao jornalista. Vá lá ...
Não sabemos se o médico e politico chegou a ponderar abandonar a medicina e a política em favor de actividades que se revelavam tão rentáveis, mas do jornalista sabemos que recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou, sem hesitações , a sua condenação e para o Tribunal Constitucional que considerou, como habitualmente, que não tinha nada de relevante a dizer sobre o assunto.
Decidiu-se, então, António Laranjeira Marques da Silva recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) e aí, representado pelo advogado Lopes Militão, queixou-se de que os tribunais portugueses ao condenarem-no por ter contado a verdade sobre matéria de interesse público, tinham violado o artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) que consagra a liberdade de expressão.
E o TEDH veio a considerar que, na verdade, a condenação do jornalista pela violação de segredo de justiça, tendo em conta que nenhum prejuízo resultara para o inquérito criminal (de resto, arquivado) e que em nada protegia a reputação do médico, constituía uma desproporcionada ingerência na liberdade de expressão do mesmo, que não correspondia a nenhuma “necessidade social imperiosa” que a justificasse , pelo que declarou que tal condenação violava o art.º 10.º da CEDH.
Quanto à condenação pelo crime de difamação, igualmente considerou o TEDH que tal condenação violava a liberdade de expressão do jornalista, tendo em conta que o mesmo tinha sido, essencialmente, factual e verdadeiro. É certo que na "Nota do Director", que os tribunais portugueses tinham sublinhado como particularmente grave em termos difamatórios por insinuar a existência de outros "casos", o jornalista assumia um certo tom crítico quanto ao médico e político. Mas tais afirmações, tendo em conta o contexto de cobertura mediática do processo em causa, tinham suficiente base factual para ainda estarem protegidas pela liberdade de expressão, não se justificando uma condenação criminal só por essa frase valorativa. E, assim, no passado dia 19, o TEDH condenou mais uma vez Portugal a indemnizar um jornalista. (Público de 22/01/10)
[FTM]
Sem comentários:
Enviar um comentário