quarta-feira, 23 de março de 2011

Artur Agostinho (1920 - 2011)


Artur Agostinho era um castiço. Ou, como o próprio dizia, «um gajo porreiro». Entrevistei-o há dois anos, para a GQ. Reproduzo aqui a entrevista, para ler e sorrir, sobretudo nestes tempos politicamente sombrios. O Artur Agostinho conheceu-os bem e nunca os esqueceu.





Nasceu no dia de Natal. Como é disputar atenções com o Menino Jesus?

(risos) Para mim nunca houve problema. Houve sempre uma grande identidade entre mim e o Menino Jesus, fomos sempre muito cúmplices.

E as prendas? Nunca houve a tentação de juntar as duas prendas numa só?

Os meus pais tiveram sempre o cuidado de dar duas prendas em vez de uma.

Nasceu em Lisboa, em 1920. Como era uma infância em Campolide nessa altura?

Era uma vivência muito familiar, um tempo onde os vizinhos se conheciam todos uns aos outros. Podíamos deixar a porta quase aberta porque não havia problemas. Portanto, tive uma infância simpática num bairro que era característico. Cada bairro era um universo, com a sua mística, os seus clubes desportivos e recreativos, os seus grupos de amigos, era muito interessante.

E nessa idade, sonhava ser polícia ou bombeiro na idade adulta?

Comecei a ter o sonho de locutor de rádio com 9 ou 10 anos. Lembro-me quando o meu pai trouxe para casa o primeiro rádio. Foi uma festa! E eu lá ia ouvindo: a Emissora Nacional, o Rádio Clube Português e mais tarde a Rádio Renascença. Fundamentalmente ouvia as emissões infantis, do Oliveira Cosme ou do Henrique Samorano. Depois comecei a ouvir as emissões particulares de Lisboa: A Voz de Lisboa, a Rádio Graça, onde apareceu a Milú. Ouvia no Clube Português um programa humorístico que deve ter sido uns dos pioneiros do bom humor em Portugal, chamava-se «Orquestra Aldrabofona», composta por gente com muita graça. Contavam histórias, tocavam músicas e cantava. Uma emissão curiosa.

Começava então a imitar o que ouvia na rádio?

Comecei a fixar alguns dos locutores que foram para mim grandes referências. Fixei-me muito no Fernando Pessa, uma referência grande da Emissora Nacional antes de ter ido para a BBC. Gostava de ouvir o Jorge Alves - outro estilo, mais animado e de variedades. E depois havia outros, como o Bessa Leal, a Laura Rodrigues, a Maria Resende ou o João da Câmara. Eu ouvia aquelas pessoas e sonhava vir a ser como elas. Foi assim que começou.

E começou mesmo pela rádio.

Sim, o que foi também uma casualidade.

Em rádios amadoras?

Nasceu no bairro de Campolide a minha possibilidade de realizar o meu sonho de fazer rádio. Eu era sócio de um clube recreativo de Lisboa, «Campolide Atlético Clube», onde aliás fiz pela 1ª vez teatro amador.

Ainda se lembra da peça?

Não me lembro, sei que tinha mais ou menos 16 anos quando me estreei como actor. Nesses clubes, ao fim-de-semana, havia bailes; contratavam um conjunto musical e quando não havia dinheiro, os bailes eram feitos com discos. E nessa altura, sempre que se tirava um disco e se punha outro, eu ia dizendo umas “larachas” para entreter e ganhei uma certa popularidade entre aquela população de 150 pessoas. Até que um dia um dos amigos que ia ao clube veio-me dizer: “Sabes, agora sou locutor numa estação que estava na Graça e que mudou para Campolide, a Rádio Luso, e eles estão à procura de locutores e tu tens muito jeito, podias experimentar”. Eu já me tinha desinibido artisticamente e disse que iria lá e assim comecei por fazer locução 2 vezes por semana. A certa altura queriam que fosse todos os dias mas era estudante e não podia. Mas a história da rádio nessa altura é muito interessante porque eu estou a falar de 1938, 1939, ou seja, as vésperas da Segunda Guerra. E os alemães e os ingleses já na altura procuravam fazer a sua propaganda através da rádio. Através da música, as duas potências davam uma grande ajuda às estações amadoras que eram pobres, não tinham receitas, tinham os seus grupos de associados. Então ingleses ou alemães cediam discos dos seus arquivos. A rádio Luso, que estava com dificuldades financeiras, entrou no jogo dos alemães e eu, que era todo anglófilo, disse que não trabalhava mais na estação e passei para uma que dava auxílio aos ingleses, o Clube Radiofónico de Portugal. Depois tive um problema com uma pessoa de lá e fui para outra que também estava a ajudar os ingleses, a rádio Peninsular, e foi assim que a minha carreira começou, mas sempre como amador. Até que um dia fui contactado pelo director do Rádio Clube Português que me convidou para ser produtor de um programa semanal na rádio que tinha os seus estúdios na Parede e eu aceitei. Fui fazer um programa de 15 minutos semanal que era o «Músicas e Palavras». Passado algum tempo convidou-me para outro programa e fiz um excelente programa semanal que passava aos domingos, chamava-se «Cinema Sonoro», dedicado ao cinema, arte pela qual também me tinha apaixonado. Entretanto, começou a aparecer a minha vida cinematográfica com o «Capas Negras». Assim, comecei a fazer muitos programas como colaborador. Passado algum tempo o Victor Santos convidou-me para passar a fazer parte do quadro de locutores do Rádio Clube Português. Era então a minha profissionalização como locutor. Fui fazer parte de uma equipa de locutores constituída pelo Jaime Silva Pinto e pela Natália Correia, veja lá.

Deu-se bem com ela?

Muito bem. Viajávamos juntos depois da emissão no comboio. Não tínhamos automóvel. Saíamos no Cais do Sodré, depois apanhávamos um táxi, eu deixava-a na Rua da Artilharia e eu seguia para Campolide. Foi um tempo engraçado.

Chegou a conhecer o António Ferro, o chefe da propaganda salazarista?

Conheci.

E qual a impressão que tem dele?

Tinha uma excelente impressão, sem fazer análise do ponto de vista político. Mas como intelectual achei-o um homem muito interessante. Ele tinha um programa na cabeça que era tornar a Emissora Nacional popular, chegar mais ao público. Naquele tempo, entre nós, a Emissora Nacional era muito formal, tudo no estilo engravatado. O António Ferro quis transformar as emissões e fazer emissões sem gravata.

E como era conviver com a censura do regime?

A censura aos locutores passava um bocado ao lado. Porque os locutores, ao contrário de hoje, só liam as notícias, não éramos nós que fabricávamos as notícias. Portanto, as notícias eram feitas no departamento de noticiários da Emissora Nacional. Esses noticiários eram feitos com base nas agências de notícias, eles é que preparavam, corrigiam e depois havia um sector que censurava internamente, ou seja, havia duas censuras, uma da agência de notícias e outra do regime.

E o dr. Salazar, chegou a conhecê-lo?

Cumprimentei-o uma vez numa recepção que ele fez aos funcionários públicos. Pareceu-me um homem muito distante. Aliás, só me lembro de uma pessoa que me tivesse impressionado com o olhar como ele me impressionou. Um olhar gélido, frio: o Nasser, do Egipto. Isto aconteceu quando acompanhei a selecção nacional que foi jogar ao Egipto e o presidente Nasser veio receber-nos.

No entanto, acabou não apenas por fazer rádio mas quase tudo o que mexe: cinema, televisão, publicidade, jornalismo. Como é possível tocar todos estes instrumentos?

É uma questão de método.

Disciplina?

Sempre fui desarrumado mas disciplinado, ou seja, sou arrumado na minha desarrumação.

E as fãs? Numa altura em que não havia televisão, as fãs deviam apaixonar-se pela voz.

Sim, havia aquele encantamento do mistério, quem é esta voz? Isso permitia situações engraçadas. Por exemplo, apanhar o eléctrico e subitamente ouvir duas pessoas a falarem sobre mim, sem saberem que eu estava ao lado.

Nunca se meteu na conversa?

Uma vez ia em São Bento no eléctrico e vinha a ouvir uma conversa entre dois senhores. Um dizia muito bem de mim. O outro dizia mal e acrescentava que já tinha almoçado comigo muitas vezes e que me conhecia perfeitamente. Então, quando cheguei ao destino, toquei a campainha para sair e disse-lhes, ao descer: “Meus senhores, muito boa tarde, eu sou o Artur Agostinho”. (risos)

E nunca teve mulheres que queriam saber quem era a voz?

Havia muito. Escreviam muito, pediam fotografias autografadas.

E enviava?

Enviei muitas.

Chegou a ter alguma a persegui-lo?

(risos) Vale a pena abrir esse capítulo?

Esse é o capítulo interessante!

Há mulheres que se sentem apaixonadas pelos actores, mas no fundo não o estão. Estão apaixonadas pela imagem que criaram deles, pela fantasia.

Chegou-lhe a acontecer isso?

Claro, recebia muitas cartas de amor.

E nunca conheceu nenhuma dessas fãs?

Não. Sempre fui defensor de manter esse mistério.

Olhando para trás, qual foi a sua maior desilusão ou mágoa?

A minha maior desilusão foi na altura do 25 de Abril quando as pessoas tentaram colar-me ao regime político porque eu trabalhava na Emissora Nacional. A mágoa foi a incompreensão das pessoas, umas por ingenuidade, outras por influência de terceiros. Enfim, a Amália costumava-me dizer muitas vezes, entre as conversas nos intervalos dos espectáculos: “Sabes, houve muita gente que me ajudou a subir na minha carreira artística. Mas quando cheguei ao topo, essas mesmas pessoas começaram a pensar na melhor forma de me deitarem abaixo.” E isto é completamente verdade. Portanto, com a revolução conotaram-me com a PIDE. Como não conseguiram transformar essa mentira em verdade, aproveitaram mais tarde para me prenderem de madrugada com a acusação de que eu fazia parte de uma associação de malfeitores. Depois ainda houve outras histórias, uma das quais envolvia a minha pessoa, vestida de padre num carro funerário, com um caixão cheio de armas... (risos). Surreal! Então fizeram uma reunião plenária no “Record”, houve uma moção de confiança, apareceu um sujeito a contar essa história do carro funerário e eu passei a traidor, etc., etc. Foi assim que acabou a minha direcção de 12 anos no “Record”.

Sabe quem foram os cabecilhas dessas infâmias?

Sei. Mas não posso dizer os nomes. Decidi não dar qualquer importância a essas pessoas. Muitos deles vieram mais tarde pedir-me perdão. Disse-lhes que estavam perdoados mas que não esquecia.

Voltando às boas memórias, como era Amália Rodrigues?

Uma grande artista, uma excelente companheira. Com muito bom humor, tinha muita graça, contava histórias maravilhosas. Mas também era uma mulher insegura, muito insegura, com medo. Medo da morte, das doenças, de deixar de agradar às pessoas, de cantar mal, medos que ela vencia de uma maneira espectacular quando começava a actuar.

E Portugal no Mundial de 1966: memórias?

Estávamos na década de ouro do futebol português. Tive a felicidade de viver uma época realmente extraordinária do nosso futebol. O primeiro indício de excelência foi numa excursão do Benfica ao Brasil. Logo a seguir o Benfica entrou a ganhar duas Taças dos Campeões Europeus no começo dos anos 60. Em 1964, o Sporting ganha a Taça das Taças, outro feito brilhante. E em 66 a Selecção foi ao Mundial. Não se pode desejar melhor.

E em termos comparativos: Eusébio ou Cristiano Ronaldo?

Não pode haver comparações nenhumas. Recuso-me a comparar jogadores de épocas diferentes, com futebol e estratégias diferentes, com condições de terreno diferentes, com bolas diferentes, com tratamentos médicos aos jogadores diferentes, com alimentação e vida social diferentes. Tudo isso pesa e não se pode comparar.

Então comparemos jogadores da mesma época: Pelé ou Eusébio?

Para os portugueses, Eusébio. (risos) Mas, realmente, Eusébio era mais completo. O Pelé foi um extraordinário mágico da bola, com uma capacidade de oportunidade e de esforço, ele “cheirava” o sítio certo onde estar. O Eusébio era mais genuíno, mais humilde. Mas ambos eram grandes jogadores.

E hoje? Está descontente com a Selecção Nacional do prof. Queirós?

Estou triste porque temos jogadores com muito talento, mas a equipa não funciona. Uma equipa de futebol não é um grupo de talentos, é uma equipa, um colectivo. O prof. Carlos Queirós conhece e sabe muito de futebol, mas parece-me que tem algumas incertezas, algumas dúvidas quando está sentado no banco.

Finalmente, vamos ao cinema. Que impacto teve o facto da voz da rádio ter aparecido nas telas? Ou seja, estou a falar, novamente, de mulheres.

Foi um impacto altamente positivo. Fiz «Capas Negras» e, como sabe, era um galã estudante, malandreco, pouco sério, interessado em sacar umas coisas, uns dinheiros para a sua República. Depois, no «Leão da Estrela», era um galã de outro tipo, um bocadinho mais sofisticado. Mas penso, apesar de tudo, que as pessoas nunca me viram como galã. Antes como um animador, um homem divertido.

A Laura Alves, sua parceira sentimental no «Leão da Estrela», era uma mulher muito bonita.

Muito bonita. Era uma grande actriz, uma grande mulher, uma grande companheira e as pessoas admiravam-na muito.

E o Artur Agostinho era uma pessoa namoradeira ou nem por isso?

Não, nem por isso. Eu era um obcecado pela profissão, um fanático do trabalho. Tive a sorte de poder trabalhar naquilo que gosto e isso nem sempre acontece. É um milagre e fiz as coisas com paixão, de tal forma que para mim não havia horários de trabalho, nem férias, isso não significava nada. Era capaz de pedir para faltar 2 ou 3 dias para ir a qualquer lado divertir-me, mas também se fosse necessário trabalhar 48 horas seguidas, lá estava eu.

Ainda hoje vê cinema português?

Tenho visto muito menos. Mas ainda vejo.

Manoel de Oliveira?

Vejo por uma questão de obrigação e respeito. Um homem que chega aos 100 anos a fazer cinema, enfim, posso não concordar com algumas fórmulas cinematográficas que ele utiliza, menos dinâmicas, menos ritmadas, mas tenho um grande respeito e admiração por ele.

E se ele o convidasse para um filme?

Com certeza que aceitava. Era uma honra para mim.

Como é que vê o Portugal de hoje?

Com uma grande preocupação quanto ao futuro desta geração e das próximas. Portugal realmente vai ter uma vida complicada. Eu vivi no Brasil seis anos, a gente sabia que era uma bagunça, mas é também um país que tem riquezas naturais. O que é que Portugal tem? A riqueza que poderá ter está nas suas pessoas e na formação delas. E a formação que eu vejo da juventude, dos estudantes, não é uma formação capaz de lhes dar força, condições e ferramentas para o futuro. Receio muito por esta geração. Eu, que sou um optimista, vejo tudo isto com muita preocupação. E aqueles que chegaram nesta altura aos 30 e tal, 40 anos e que deixam de ter a possibilidade de trabalhar, vão fazer o quê? Isto numa época em que a primeira coisa que perguntam não é o que o outro sabe fazer, mas quantos anos tem. Um disparate, claro, porque a idade é sempre relativa: eu conheço pessoas de 30 anos que são velhas e conheço homens, como o nosso realizador Manoel de Oliveira, que é jovem na cabeça.

E o Artur, que idade tem?

Tenho 87 anos.

Eu não me referia a essa idade. Referia-me à outra.

Talvez 45 ou 50 anos. (risos)

Como é a sua vida hoje?

Muito simples e fácil. Ainda faço coisas para a televisão, mas tento adequar o papel. Há 8-10 anos tive de meter a gravata diariamente durante quase dois anos na «Ana e os Sete», rodar todos os dias, incluindo aos sábados. Ia para o estúdio às 8h, saía às 20h e levava o papel para estudar para a manhã seguinte. Hoje já não posso fazer isso, é muito violento. Além disso, escrevo para o “Record”, distraio-me um bocado na internet, faço mais companhia à família do que fazia, dou as minhas voltas, vou ver um ou outro espectáculo, vou almoçar fora com a minha mulher. E depois tenho a escrita, que ajuda muito a preencher o tempo.

E como gostaria de ser lembrado?

Como um gajo porreiro! (risos)





[JPC, na GQ, Janeiro de 2009]

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